Entrevista - Nuno Lopes

Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas (APH)

Acesso de proximidade a medicamentos é fulcral para pessoas com hemofilia

São cerca de mil as pessoas com hemofilia em Portugal, uma comunidade que a Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas (APH) acompanha e apoia.

No âmbito do Dia Mundial da Hemofilia, entrevistamos Nuno Lopes, atual presidente da APH, numa conversa sobre a importância de bons níveis de literacia nos pacientes e cuidadores, sobre o acesso facilitado à terapêutica e também sobre as ambições de qualquer pessoa com hemofilia: ter direito a uma vida igual à da maioria.

A vida das pessoas com hemofilia em Portugal difere de acordo com as gerações. É possível ter uma vida completamente “normal”, mesmo com hemofilia?

Sem dúvida que, durante muitos anos, foi uma condição incapacitante, sem tratamentos eficazes, e que deixou sequelas na geração mais velha. Mas não existe um estereótipo da pessoa com hemofilia. Temos pessoas com 5 anos e pessoas com 70 anos. O que muda está relacionado com o momento em que essas pessoas surgiram na história da Medicina.

Por exemplo, pessoas que nasceram nas décadas de 1950 a 1970, mesmo seguindo agora uma profilaxia à risca, têm inevitáveis sequelas e danos articulares que a profilaxia não reverte e que começaram num tempo em que pouco havia a fazer para a hemofilia.

Mas a profilaxia permite ter um controlo das hemorragias espontâneas e, no fundo, acaba por permitir ter uma vida igual à das outras pessoas.

Ganhámos o direito a morrer do mesmo que os outros e a esperança de vida de uma pessoa com hemofilia é igual à das outras pessoas que não têm hemofilia.

Calculo que na geração mais jovem seja ainda mais evidente esse conceito de “igualdade”…

Sim, nas gerações mais jovens, é visível a diferença em relação aos mais velhos e é um orgulho para nós, de outras gerações, olhar para eles. Temos pessoas na casa dos 20 ou 30 anos, que fazem profilaxia desde tenra idade, e que não têm danos articulares nenhuns e isso é visível.

Portanto, as possibilidades destes jovens são exatamente iguais às possibilidades e oportunidades dos jovens que nascem no mesmo meio que eles e que não têm hemofilia. Estes jovens vão a jogo com as mesmas armas que os outros. Se alguma coisa ao longo da vida não for bem-sucedida, não se pode deitar as culpas numa patologia ou numa condição, não se pode usar a hemofilia como bengala.

Podemos assumir que uma pessoa com hemofilia, submetida a acompanhamento médico e tratamento, pode ter todas as experiências na vida, fazer qualquer tipo de desporto, por exemplo?

Se uma pessoa deseja fazer escalada, deve poder fazer escalada. Toda a gente tem direito a uma vida igual à da maioria das pessoas, para evitar usarmos o conceito de normalidade, que é muito relativo.

As pessoas com hemofilia querem ter a vida de acordo com os seus desejos.

Voltando ao exemplo que estava a dar, se quisermos fazer escalada, temos esse direito.

Para isso é importante que haja uma personalização da medicação, que tem de ajudar a ir ao encontro e anseios de cada pessoa com hemofilia. É hoje possível, e é desejável, personalizar o tratamento de acordo com os anseios e estilos de vida das pessoas.

Porque a condição de hemofilia não pode limitar as escolhas e as pessoas têm direito a ter a vida que ambicionam.

Reparo, e não só de agora, que na APH evitam a expressão doente. Preferem paciente ou pessoa com hemofilia. Porque na verdade não estão sempre, ou não se sentem doentes. É importante esta diferença de nomenclaturas?

As palavras têm efeito na vida real. A forma como usamos as palavras tem uma agência inegável na vida real. Pensar em mim como hemofílico ou como pessoa com hemofilia comporta logo uma diferença de noção.

E de alguma forma, as palavras também podem ajudar a eliminar o estigma, que ainda não é um assunto que tenha ficado completamente no passado.

As palavras contribuem para a nossa auto-imagem e também para a imagem que os outros têm de nós. Podem empoderar-nos ou fragilizar-nos, é isso?

Na APH pretendemos, aliás, colocar a tónica num termo que não existe ainda na língua portuguesa, só mesmo na nossa associação: a ‘descoitadinhização’.

É um termo que usamos com humor mas também para passar uma mensagem séria, e gostávamos que pegasse na sociedade em geral, tentando aqui fazer uma bem-disposta ‘lexis prudência’. Tenho uma espécie de sonho de, um dia, ir consultar um dicionário e encontrar lá a palavra ‘descoitadinhização’. Porque, infelizmente, ainda há quem caia na armadilha do coitadinho.

E aqui não se trata de desvalorizar a experiência de nenhuma das pessoas com hemofilia. Ao invés, trata-se de pegar na superação de uma situação - hoje em dia já não tão desvantajosa - e não utilizar essa eventual desvantagem como explicação para um potencial insucesso em qualquer área da vida.

Essa é uma mensagem para passar sobretudo aos mais novos?

Os nossos jovens, que são o futuro, não têm de se ver como inferiores em nada. A condição deles não os torna inferiores. Pode até torná-los mais capazes de lidar com a contrariedade, na medida em que, é normal que uma condição crónica possa aportar uma dificuldade acrescida, mas que não tem de abranger todos os aspetos da vida. Se tivermos os médicos do nosso lado, se tivermos acesso a tratamento personalizado, se nos envolvermos e formos informados… as limitações na nossa vida serão as mesmas do que as de qualquer pessoa sem hemofilia.

E às crianças com hemofilia, como podemos chegar de modo a começar a formar jovens mais empoderados e com outros níveis de literacia?

Podemos e devemos fazê-lo através de conteúdos produzidos precisamente para eles, para as suas respetivas faixas etárias. E ter também iniciativas e conteúdos informativos e formativos para os pais e cuidadores.

E nas escolas, como devem ser recebidas as crianças e que informação deve ser dada à comunidade escolar?

Em primeiro lugar, defendemos que uma criança com hemofilia tem de ser recebida como qualquer outra criança, e aí não cedemos um milímetro. Mas, quer da parte da escola quer da parte dos pais, tem de haver informação fornecida sobre a hemofilia. Aliás, na APH, estamos sempre disponíveis para sessões de esclarecimento em escolas.

É importante dizer ainda que não aceitamos, por parte de ninguém, que uma criança com hemofilia seja sinalizada como uma criança diferente, nem como superprotegida. Não pode haver um tratamento enfático.

Mas, claro, a comunidade escolar tem de saber como atuar no caso, raríssimo, de acontecer um incidente ou acidente que entre no território da hemofilia. Mas não pode haver excesso de preocupação com aquela criança, porque as crianças notam isso e absorvem-no.

Outra mensagem importante é a de que as crianças precisam de ser crianças e não têm de ser constrangidas pela hemofilia. Graças ao avanço científico e da Medicina é possível ter uma vida na infância, na escola e na família, com absoluta “normalidade”. As crianças não podem crescer com uma imagem de diferença colada a si próprias.

A sua diferença é uma mera característica, que não é nada de determinante para a sua personalidade. As escolas e famílias têm de estar atentas a isso. Não queremos promover a diferença, mas sim a inclusão.

Referiu, há pouco, que os pais e cuidadores precisam também de se munir de conhecimento sobre a hemofilia. O que é que considera essencial?

Precisam sobretudo de uma boa comunicação com o médico, para criar uma relação de confiança mútua. Como em todas as relações, isso dá trabalho. E tenhamos em conta que esta é uma relação que dura muitos anos.

Essa relação ainda é muito assimétrica?

A literacia é um esforço feito dos dois lados, mas que tem de partir muito do paciente e cuidador, para aprender o máximo sobre a patologia.

Porque, depois, é a consulta o momento primordial para transferência de informação entre médico e paciente e é o local certo para validar conhecimentos e esclarecer questões.

Ainda há pessoas que saem das consultas com dúvidas, e cientes de que têm essas dúvidas, mas não procuram esclarecê-las com o médico.

Infelizmente, acontece que muitos pacientes não fazem perguntas aos médicos. Temos de saber falar com os médicos, expor as nossas dúvidas, pedir esclarecimentos...

Diria, portanto, que a relação entre médico e paciente tem de ser mais simétrica, igualitária. Até porque é uma relação fundamental em todas as fases da vida e em todas as gerações.

Até há pouco tempo, o médico tinha um ‘status’ quase endeusado. Isso ainda se verifica; muitas vezes é alimentado pela passividade do paciente, outras vezes pelo próprio clínico e outras ainda por ambos.

As pessoas só têm a ganhar na partilha de informação. E muitos médicos e pacientes já o perceberam. A informação é poder e deve ser partilhada, até porque empodera os pacientes.

Medicamentos com entrega em proximidade

Qual o tema que a APH elegeu este ano para assinalar o Dia Mundial da Hemofilia?

O acesso de proximidade à terapêutica foi o que escolhemos como fundamental. É um assunto há muito tempo abordado por nós enquanto Associação. Durante anos, foi-nos dito que era uma impossibilidade logística e financeira.

Mas, com a pandemia, essa questão desbloqueou-se e os pacientes puderam começar a receber a sua terapêutica na farmácia de rua mais perto da sua casa ou noutra que lhes fosse conveniente.

Temos de manter este acesso à terapêutica de proximidade. É fundamental para a adesão das pessoas ao tratamento de que precisam. E é fundamental em termos de disciplina.

Se um pai não tiver de se deslocar 100 quilómetros para ir buscar terapêutica para um filho, isso facilita muito a vida. É mesmo um fator crítico de adesão à terapêutica necessária.

E vem na direção do que é consensualmente aceite sobre a personalização do tratamento das pessoas com hemofilia.

Temos de encontrar alguma coisa com que possamos aprender desta pandemia. Ou então, terá sido só arrasadora. Se também aconteceu alguma coisa boa, temos de aprender com essas experiências positivas.

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