Convidado Especial - Alexandre Lourenço

Presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH)
Houve uma subvalorização dos problemas de saúde que não são Covid

“É obrigatório, e no imediato, avaliar a morbilidade e mortalidade decorrentes da suspensão de atividades programadas de consultas e cirurgias”.

A declaração é do presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre Lourenço, que recorda a suspensão de milhares de cirurgias e consultas durante o período de pandemia de Covid-19. Acrescenta ainda que os cuidados de saúde primários deixaram praticamente de referenciar doentes para primeiras consultas hospitalares, alertando que é necessário conhecer os números desta realidade.

O sistema português respondeu bem à pandemia?

Respondemos bem, na globalidade. Por exemplo, respondemos bem ao começar a definir primeiro os dois hospitais que iriam receber doentes Covid, no início da pandemia, ainda antes de março. Também quando os casos começaram a crescer, pode ter sido aceitável a decisão de suspender a atividade programadas nos hospitais, até porque na altura havia escassez de equipamentos de proteção individual.

Houve razoabilidade quando essa decisão foi tomada num primeiro momento, em meados de março. Mas a partir de determinada altura, quando a 15 de abril se comunica à população que o pico da doença foi atingido, já sabíamos que os hospitais à partida não teriam uma pressão acrescida.

O que fazia sentido era definir um sistema dual: ter uma rede para prestação de cuidados à Covid-19 (incluindo cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados extra-hospitalares) e libertar os restantes serviços para a resposta genérica à população.

Tivemos inclusivamente uma quebra histórica na procura de urgências. Isto reflete receio por parte das pessoas?

Esta definição de uma rede para a Covid-19 também daria uma maior confiança à população. Efetivamente, muitos dos problemas que tivemos estão relacionados com os receios ou falta de confiança na população. Tivemos até doentes com enfartes agudos do miocárdio a adiar idas às urgências.

É importante dar essa confiança à população e os profissionais de saúde também têm de transmitir essa confiança. O Hospital de São João é um bom exemplo do que foi feito nesta área, conseguindo manter, com separação de circuitos, as duas respostas: Covid e não Covid.

Ou seja, é possível manter as duas respostas com segurança. E se a atividade programada - as consultas e cirurgias- abrem e estão a decorrer, é porque há segurança. Nenhum hospital abrirá atividade eletiva sem ter critérios de segurança cumpridos. Creio que uma definição explícita desses critérios e até uma avaliação ou validação externa poderiam ajudar para garantir um sentimento de maior confiança.

Mas não é compreensível que os cuidados de saúde não estejam organizados neste momento de forma a garantir acesso aos doentes.

Falamos muito dos hospitais...Mas também abrandaram os cuidados de saúde primários….

Sim, um dos grandes dramas tem sido a referenciação de doentes dos centros de saúde para o hospital. A referenciação de doentes tem sido muito limitada. Também por isso temos alertado para a necessidade de um plano integrado para relançar a atividade do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Tudo isto teve impacto na saúde dos portugueses?

Foram cancelados milhares de consultas e cirurgias. Muitos diagnósticos não chegaram certamente a acontecer, até por falta de referenciação. E o drama, aqui, é que, se os doentes não são acompanhados e referenciados, vamos ter doentes mais descompensados nas urgências ou com estados mais evoluídos da doença e com menor capacidade de recuperação.

Ninguém pode acreditar que parar o sistema de saúde e os seus cuidados, durante pelo menos um mês e meio, não tenha efeitos sobre a saúde da população.

Precisávamos também de uma maior transparência ao nível desses dados, saber que especialidades e que procedimentos ficaram por realizar, quantas e quais as referenciações que não foram feitas, etc. Não temos todos esses dados para tomar decisões adequadas.

Houve uma sobre atenção sobre a Covid-19 e há uma subvalorização dos problemas não Covid. Daí que a transparência de dados também seja essencial. Nem consigo crer que o Ministério da Saúde não esteja a fazer uma avaliação da morbilidade e mortalidade decorridas da suspensão da atividade programada. Porque isso é uma obrigação, no imediato.

Temos também obrigação de preparar o futuro próximo. Como será com uma potencial segunda vaga da doença?

Isso preocupa-me. Como estamos a planear a resposta para o outono e como é que o sistema vai responder? Como vamos viver uma eventual segunda vaga numa altura de circulação de outros vírus respiratórios? É inimaginável dizer aos hospitais para fechar três meses e só se dedicarem a infeções respiratórias.

É comum falarmos em aprendizagens que se retiram de momentos menos bons. Que lições ficaram no sistema de saúde com esta pandemia?

Esta fase mostrou-nos a enorme importância de integrar políticas de saúde com políticas de solidariedade social, por exemplo. E a enorme necessidade de reestruturar o sistema de saúde. Mas essa reestruturação não se coaduna com políticas avulsas.

Esta pandemia mostrou-nos matérias em que é necessária também uma profunda transformação, como no digital. Aquilo que tivemos ainda não foi uma transformação digital. O que o sistema de saúde fez foram chamadas telefónicas em consultas de acompanhamento ou seguimento, mas foi feito como um recurso e não de forma estruturada.

Há aqui uma janela de oportunidade para o espaço das teleconsultas e da implementação das videochamadas. O papel da telessaúde pode ser relevante mas tem de ser feito de modo ordenado e programado.

De todo o modo, nunca haverá uma substituição da observação direta e do contacto direto entre profissionais de saúde e doentes.

Não é à distância e sem meios auxiliares que se faz um diagnóstico preciso ou que se avança para uma cirurgia.

A observação do doente não é substituível de forma direta pelo que é feito à distância. Mas pode haver aqui um papel relevante para consultas de acompanhamento, triage, ou outros modelos a identificar.

Como profissional do sistema, o que é que a pandemia deixou mais evidente?

Creio que foi a noção de que o nosso estado de saúde depende do comportamento dos outros. Isto tem um enorme impacto mesmo no sistema - a noção de que o sistema de saúde é uma comunidade e que tem impacto numa resposta comunitária e não individual.

A política de saúde é feita para uma comunidade e isso ficou claramente evidente.

Percebemos que o sistema é um todo. O hospital, por exemplo, pode significar quase zero sem os cuidados de saúde primários.

A Covid-19 demonstrou-nos ainda a necessidade de vermos o estado de doença como um contínuo e não com um estado fixo. Os doentes passam por diferentes fases e a doença tem níveis de gravidade diferentes. E o sistema tem de responder de acordo com a necessidade do doente.

Temos tido um sistema em que o doente se adapta às respostas do sistema. E deve ser precisamente o contrário. Na prática, temos tido um sistema muito cristalizado e estagnado e que nao se sabe adaptar.

Mas, para uma patologia, a Covid.19, isso foi possível: o sistema teve adaptação às necessidades concretas do estado de saúde de um determinado doente num determinado momento concreto.

Em Portugal, na Covid, fomos extraordinários nisso, como nos casos dos doentes que conseguimos não internar ou nos acompanhamentos domiciliários que fizémos.

Mas isto só é possível num sistema que funciona verdadeiramente em rede.

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