Há cada vez mais pessoas com cancro do fígado. É geralmente uma doença silenciosa, mas com consequências gravíssimas quando não detetada e tratada de forma precoce.

É nosso Convidado Especial o médico José Presa, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF), numa entrevista que enaltece a necessidade de hábitos de vida saudáveis para prevenir doenças hepáticas.

Por um lado, temos mais capacidade de fazer diagnóstico e os cuidados de saúde prestados aos doentes hepáticos permitem que os doentes vivam mais tempo, acabando por surgir casos de carcinoma hepatocelular (cancro do fígado).

Mas além desta maior capacidade para diagnosticar, temos também um aumento sustentado da doença hepática.

Até 2015, muitos dos casos de cancro do fígado estavam associados ao vírus da Hepatite C, que, entretanto, passou a ter possibilidade de tratamento e de cura. Foi diminuindo o número de casos de carcinoma hepatocelular por Hepatite C, mas estes doentes, mesmo curados, têm de manter a vigilância, porque continuam a ter risco de desenvolver cancro.

A partir de 2015 e até agora, o álcool continua a ser a principal causa de doença hepática crónica e de carcinoma hepatocelular. Começamos também a ter um aumento progressivo de casos por doença metabólica do fígado (Fígado Gordo). Temos, assim, o fígado como mais um órgão atingido pela obesidade, pela hipertensão, pela diabetes….

Vamos assistir a este crescimento. E não é apenas em Portugal, uma vez que este é um problema em crescimento a nível global. Há países onde os maus hábitos alimentares são já um problema muito sério com impacto na doença hepática, como nos Estados Unidos. Na nossa Europa mediterrânea começamos também a ter casos de obesidade que desencadeiam doença hepática. E a obesidade é preocupante nas faixas etárias mais jovens e crianças.

Creio que estamos a melhorar neste aspeto, porque vamos tendo cada vez mais conhecimentos na área da doença hepática e vamos conseguindo diagnosticar mais cedo.

O problema é que, de facto, o carcinoma hepatocelular é uma doença muitas vezes sem sintomas. O fígado é um órgão muito silencioso. No geral, o sintoma mais frequente é não ter sintoma algum. Quando passamos a ter alguma queixa, já estamos numa fase de doença muito avançada.

Sem dúvida que o diagnóstico precoce é essencial. Porque podemos ter uma intervenção efetiva na doença, podendo tratá-la da melhor forma e até curá-la.

Ainda não temos, como gostaríamos, instituídas análises regulares ao fígado.

A Coordenação Nacional para as Hepatites Virais tem muita vontade de implementar as análises ao fígado uma vez por ano e é uma iniciativa que a APEF encara e apoia com muito bons olhos.

A ideia será que os cuidados de saúde primários coloquem nos seus programas de análises anuais uma análise ao fígado. Não é caro e é apenas o pedido ao utente dos analítos hepáticos, quando faz análises ao sangue. O benefício que se pode ter por incluir esta análise de forma regular é imenso para os doentes.

Ainda há muito estigma, porque há uma associação a comportamentos aditivos. E há muitas ideias erradas e mitos. Mas nem tudo o que é doença do fígado é pela via do álcool ou por consumo de drogas. Há muitas causas de doença hepática.

Este estigma tem de ser combatido por todos, por doentes e por profissionais de saúde.

As gerações mais velhas têm pouquíssima literacia em saúde, têm mesmo má informação sobre saúde, acompanhada por muitos mitos.

Por outro lado, os portugueses consultam demasiado o “Doctor Google” e vão parar a muita informação desadequada e que alarma os doentes de forma desproporcional.

Penso que a literacia em saúde tem de começar nas escolas. É preciso trabalhar nas escolas esta área, logo no 1o ciclo e acho que já se começa a fazer um pouco esse trabalho.

Nas pessoas mais velhas, temos de ser nós, profissionais de saúde, dentro das consultas, a ajudar, a conversar e a explicar. Informar e explicar aos doentes e sobretudo às famílias. Mas temos em Portugal um problema com a escassez de tempo nas consultas…

Os cuidados paliativos em doentes hepáticos são ainda uma necessidade não atendida. Em dezembro passado, houve a 1º reunião em Portugal de cuidados paliativos para doença hepática para se discutir amplamente esta matéria.

O doente hepático não é propriamente o doente crónico terminal que seja facilmente incluído dentro dos cuidados paliativos. É preciso mudar mentalidades e formas de atuação em relação a estes doentes que, por serem doentes crónicos, também precisam de cuidados paliativos. Precisamos de uma mudança no ‘mindset’. Os hepatologistas devem incluir nas suas rotinas, quando se justifique, a referenciação para os cuidados paliativos e os paliativistas devem aceitar sem reservas os doentes hepáticos.

Falando do carcinoma hepatocelular, podemos dizer que está a sofrer desenvolvimentos tremendos. Os tratamentos curativos vão sendo cada vez mais e melhores. Acredito que, nos próximos dez anos, vamos conseguir transformar o cancro do fígado; se não o curarmos, vamos transformá-lo numa doença crónica, controlável, fazendo com que o doente viva mais anos, com melhor qualidade de vida.