Dos cerca de 60 mil novos casos de cancro que são diagnosticados todos os anos em Portugal, está estimado que cerca de metade são evitáveis ou só aconteceriam em idades muito avançadas.
A prevenção e o rastreio são fundamentais e exigem uma resposta coordenada entre investigadores, profissionais de saúde, políticos e população.
No entanto, a falta de literacia em saúde e a desinformação continuam a ser barreiras que não devemos desprezar. O acesso a informação científica credível e a responsabilização individual são essenciais.
Nesta entrevista, o perito Rui Medeiros alerta para a necessidade de reforçar a aposta na investigação e no diagnóstico precoce. A ciência já provou que muitos cancros podem ser evitados ou tratados com sucesso se detetados a tempo.
Rui Medeiros pertence à direção da maior organização europeia dedicada ao cancro, a European Cancer Organization, é professor universitário, investigador e é diretor adjunto do Centro de Pesquisa do IPO Porto. Foi Presidente da ECL-European Cancer Leagues e pertence à Direção da Liga Portuguesa Contra o Cancro - Núcleo Regional do Norte.
É nosso Convidado Especial no momento em que assinalamos mais um Dia Mundial do Cancro.
De um ponto de vista coletivo temos que pensar que terá que ser um trabalho de equipa, com os investigadores a oferecerem as soluções, os profissionais de saúde a estarem atualizados e comprometidos com estas soluções, os decisores políticos a fazerem o seu trabalho e a população a aderir a estas mesmas soluções.
No caso das doenças oncológicas, estas soluções passam muito pela existência de vacinação e de rastreios organizados. De um ponto de vista individual, cada um de nós deve refletir sobre o que pode fazer para reduzir o seu risco de vir a desenvolver cancro e agir em conformidade usando todas as ferramentas disponíveis.
Uma das ferramentas mais importantes é a educação e o conhecimento sobre estas estratégias individuais, que está, por exemplo, refletida no Código Europeu Contra o Cancro, acessível a todos nós de uma forma gratuita e que tem sido bastante divulgado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro. E está lá tudo segundo o melhor do conhecimento científico atual.
Sabemos que cerca de metade dos cancros são evitáveis ou só aconteceriam em idades muito avançadas.
Temos realidades associadas a este aumento: Por um lado, o caso dos países em que existe desagregação ou ausência de serviços de saúde organizados e sem qualquer intervenção para a comunidade em geral (ex: rastreios e vacinação).
Por outro lado, existe o grupo de países em que ocorre um envelhecimento geral da população e o principal fator de risco para cancro continua a ser a idade.
Em todos os casos temos ainda a necessidade de uma contínua intervenção na comunidade para os principais fatores de risco evitáveis para cancro. Em primeira linha temos o caso do tabaco , com risco para cancro do pulmão e cabeça e pescoço, e o caso de alguns vírus como o HPV com risco para o cancro do colo do útero além de outros.
Dos cerca de sessenta mil novos casos de cancro que são diagnosticados todos os anos em Portugal, está estimado que cerca de metade são evitáveis ou só aconteceriam em idades muito avançadas (o grande exemplo é o cancro do pulmão).
Contribuem para estes números o envelhecimento da população; a maior exposição a agentes oncogénicos, sejam ambientais, como o tabaco, o álcool e a poluição, sejam víricos, como os vírus do papiloma humano (HPV) ou das hepatites.
Contribui, igualmente, o estilo de vida mais sedentário, com menor prática de atividade física, bem como dietas alimentares pobres em hortofrutícolas e fibras.
Perante este panorama e o envelhecimento da nossa população, o que só por si aumenta o risco do desgaste celular e consequente risco para cancro, e o pesadelo que é ser diagnosticado com cancro (incluindo o custo elevadíssimo do seu tratamento) existe para cada indivíduo a possibilidade de refletir sobre a sua capacidade de diminuir o seu risco de desenvolvimento de uma neoplasia e quais as ferramentas disponíveis e que sejam cientificamente válidas (ex. Código Europeu Contra o Cancro).
O caso do Código Europeu Contra o Cancro é paradigmático do que precisamos como informação necessária e é atualizado periodicamente. Está lá tudo.
A responsabilização individual e essencial para a prevenção do cancro e a redução do número de casos. Esta responsabilização implica cada um de nós ter a capacidade de avaliar as causas e consequências dos seus comportamentos e exposição a fatores de risco e a literacia para a saúde está na primeira linha.
Populações mais informadas conseguem uma melhor capacidade de compreensão. Não basta saber ler, é preciso compreender. Do mesmo modo a responsabilização individual é central para o sucesso de qualquer política de saúde pois não podemos estar sempre à espera que ira acontecer uma intervenção paternalista do Estado/Governo. Qualquer medida estatal de saúde na prevenção do cancro (ex rastreio, vacinação ou oferta de cessação tabágica) tem maior sucesso se ocorrer em ambiente de responsabilização individual sobre o que cada um de nós pode fazer para reduzir o seu risco para cancro.
A literacia em saúde tem que ser vista por cada indivíduo como a informação que pode ajudar a salvar a sua vida e a da sua família e a origem desta informação deve estar associada não só a instituições cientificamente sólidas, mas também a condições de proximidade e credibilidade.
Um aspeto que deve ser realçado é a credibilidade da fonte da informação, assim como de quem a transmite. Temos também que considerar a importância das organizações que emanam da sociedade, como é o caso da Liga Portuguesa Contra o Cancro, que tem feito um trabalho extraordinário na literacia para a saúde com enorme impacto na população em geral.
O rastreio organizado deve ser sempre visto como uma ferramenta a utilizar sempre que existe evidência do seu benefício para a população e também com base em estudos de custo efetividade que possam racionalizar a sua utilidade.
Outro aspeto importante é a diferenciação entre rastreio organizado, rastreio oportunista e diagnóstico precoce.
Os rastreios são desenhados para a deteção de lesões ou tumores em fases mais precoces, em fase inicial, quando geralmente o tratamento é mais eficaz e, como consequência, com um efeito final na mortalidade.
Outro aspeto que já observamos em alguns tumores, como o cancro da mama ou do colo do útero, é o chamado desvio à esquerda em que, enquanto no início da implementação destes rastreios ocorre a deteção de tumores mais avançados, com a continuação do rastreio e o passar do tempo o número destes tumores mais avançados diminui.
Todos os estudos sugerem que o mesmo possa acontecer no caso do rastreio do cancro do pulmão.
Além da alteração de hábitos, a participação nos rastreios organizados é também essencial e temos em Portugal três já aprovados (mama, colo do útero e colorretal).
A participação de todos na implementação destas medidas só por si seria um grande sucesso com impacto na redução do número de pessoas com cancro, mas também no orçamento do SNS.
Além de termos um grande envelhecimento da nossa população - o que só por si aumenta o risco do desgaste celular e consequente risco para cancro -, temos de considerar o pesadelo que é ser diagnosticado com cancro e o custo elevadíssimo do seu tratamento que, felizmente, o nosso SNS tem feito um grande esforço para garantir.
Neste momento estão também em discussão a implementação de novos rastreios (cancro do pulmão, próstata e do estômago).
O caso do cancro do pulmão apresenta o mesmo paradigma que o do cancro do colo do útero, em que podemos combinar duas intervenções de medicina preventiva com o impacto previsto de tornar estes tumores raros.
No cancro do pulmão, com a combinação entre redução exposição/cessação tabágica e o rastreio, e no cancro do colo do útero, com a vacinação reduzindo exposição ao vírus HPV e o rastreio.
Portugal é apontado como um dos potenciais países que poderá erradicar muito brevemente o cancro do colo do útero graças à implementação do sistema combinado de vacinação antivírus HPV, com o rastreio organizado do cancro do colo do útero.
O conhecimento científico atual permite-nos claramente concluir que mais de metade de todos os cancros seriam evitáveis ou só aconteceriam em idades muito avançadas se conseguíssemos controlar ou evitar os fatores de risco.
Temos grandes exemplos como o cancro do colo do útero que, sendo provocado pelo vírus HPV, a implementação de um programa de vacinação vem impedir esta infeção; e o cancro do pulmão, que sabemos está associado em 85% dos casos ao fumo do cigarro, o que significa que se acabássemos com o tabaco/hábito de fumar, o cancro do pulmão passaria a ser um tumor raro.
A investigação científica demonstrou que, quando falamos em doenças associadas ao tabaco, não nos devemos esquecer que não estamos só a falar do cancro do pulmão, cancro da cabeça e pescoço e outros, mas também de doenças respiratórias e cardiovasculares incapacitantes.
Sabemos que, na maior parte dos tumores, a precocidade do diagnóstico é essencial para o sucesso.
Para muitos tumores um dos problemas principais continua a ser a ausência de um método de rastreio eficaz que possa indicar ou alertar para a deteção precoce desta neoplasia. Como consequência muitos dos casos são já diagnosticados numa fase avançada e já com muita maior dificuldade de um tratamento com sucesso.
Em muitos destes casos, a investigação teve como foco a nova abordagem no tratamento personalizado do doente oncológico com recurso a Farmacogenómica e à Medicina de Precisão, de modo a aumentar a eficácia terapêutica e reduzir a ocorrência de efeitos secundários.
Neste momento, a tecnologia tem avançado a alta velocidade. Exemplo impressionante é o caso do cancro da mama, em que todos os anos conseguimos aumentar e melhorar a percentagem de sobreviventes ao cancro.
Ou ainda o caso de alguns tipos de leucemias que há 20 anos seriam uma sentença negativa e atualmente têm estratégias de tratamento com sucessos acima de 90%.
A intervenção terapêutica no tratamento dos tumores com base na Farmacogenómica e Medicina de Precisão é hoje uma realidade e um indicador da qualidade dos Centros/Hospitais Oncológicos. E começamos a verificar que os doentes e as suas famílias estão a começar a exigir essa qualidade.
Penso que a sociedade ainda está ligeiramente adormecida relativamente a esta situação e deixa tudo nas mãos do Estado para que este resolva. Temos que nos habituar a pensar não no que a Sociedade ou o Estado pode fazer por nós, mas o que cada um de nós pode fazer pela sua Comunidade.
A literacia em saúde é uma das formas de combatermos esta apatia social. Temos que compreender que em cada terapia, cada comprimido, cada vacina, existe o investimento de muitos investigadores em muitos anos ( geralmente 12 a 15 anos, tirando casos excepcionais).
Temos que valorizar a investigação realizada não só nas Universidades e Institutos, mas também nos hospitais, promovendo projetos e valorizando os percursos profissionais com ligação a ambiente de investigação. A investigação científica, a inovação e o conhecimento são conceitos fundamentais para o avanço das sociedades, assim como para a melhoria das condições de saúde da população.
O desenvolvimento da investigação científica, bem como uma formação contínua ativa, são pilares que cimentam o progresso das sociedades contemporâneas.
De uma forma menos generalista podemos também pensar do seguinte modo: A investigação em cancro pode salvar a sua vida e a da sua família.
Uma mensagem de esperança para a população em geral, para os doentes e para as suas famílias. Uma mensagem de esperança de quem sabe que estamos muito melhor do que há 30 anos e de quem acredita que estaremos muito melhor daqui a 30 anos.
Sabemos que temos que trabalhar em todas as frentes, e em especial para reduzir ainda mais as desigualdades do acesso aos melhores cuidados de saúde.
Apesar das dificuldades e de todas as situações menos boas, em Portugal temos excelentes profissionais de saúde, investigadores ao mais alto nível e um Sistema Nacional de Saúde com uma grande generosidade para todos os cidadãos oferecendo o melhor que a ciência pode oferecer.