É uma figura incontornável da gastrenterologia em Portugal e além fronteiras. Na reta final do seu mandato enquanto presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Rui Tato Marinho, é nosso Convidado Especial, numa entrevista dividida em duas partes.
Nesta primeira parte, o médico gastrenterologista e hepatologista reflete sobre a resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à pandemia de Covid-19 e apela a uma maior aposta nos profissionais de saúde, sublinhando que é momento de unir esforços em prol de uma Saúde ainda mais resiliente em Portugal.
Deixa-nos ainda reflexões sobre uma pandemia que nos mostrou que “cientistas e profissionais de saúde são precisos como pão para a boca para não afundarmos o barco”.
O impacto foi brutal e ainda vai ser mais brutal. É como um terramoto, em que temos um epicentro e depois as ondas de choque. Nesta área, o principal impacto foi nas colonoscopias, no rastreio do cancro colorretal. No período pior da crise [quando se suspendeu toda a atividade não-Covid], em abril do ano passado, fizemos 10% do que era habitual.
O nosso país faz cerca de 500 mil exames por ano, temos uma capacidade instalada muito boa para colonoscopias, mas nesse mês só realizámos cerca de 10%. A pouco e pouco, estamos a recuperar.
Por outro lado, ao longo do país, houve vários serviços de gastro que, no fundo, tiveram de o deixar de ser, foram quase fisicamente desfeitos e os gastrenterologistas avançaram para a linha da frente para tratar Covid-19.
Houve ainda uma redução significativa de outros exames, com muito impacto, por exemplo, nas ecografias abdominais.
A nossa especialidade tem claramente um forte pendor oncológico. Um terço de todos os cancros são do aparelho digestivo. Até diria que é o cancro mais frequente nos portugueses. Temos de pensar que, quando o trabalho do gastrenterologista fica dificultado, estamos a mexer em muitos
cancros: esófago, pâncreas, estômago, fígado, cólon e reto… Estamos, no fundo, a impactar cerca de um terço dos cancros em Portugal. Chamo-lhes os ‘Big Five’ e são responsáveis por 10% das mortes; algumas são evitáveis.
Porque o gastrenterologista tem um papel vital e único na prevenção, rastreio, no diagnóstico, tratamento, cura e paliação em um terço dos cancros que afetam os portugueses.
Claramente, os resultados da pandemia em Portugal são quase bipolares, porque tivemos uma fase de excelência e depois outra mais recente em que as coisas podiam ter corrido melhor, muito por responsabilidade de todos e de cada um de nós. Mas o SNS mostrou uma forte resiliência. O país teve capacidade para fazer os cuidados intensivos acontecer, como se fossem os bombardeiros de uma guerra convencional antiga. A saúde pública, a medicina geral e familiar também se mobilizaram e os profissionais de saúde hospitalares foram capazes de se adaptar à constante mudança.
Sempre estive muito confiante no SNS, até porque os diretores de serviço dos nossos hospitais são pessoas que, como eu (e puxando pela nossa autoestima), estiveram 20 ou 30 anos no SNS e sabem de liderança, nunca perderam a cabeça e o controlo e abordaram uma catástrofe de forma muito correcta e calma.
Sem dúvida. Há mais de 20 anos decidiu-se politicamente que o SNS não era o comprimido universal. Há muitos países em que isso tem acontecido. Foi tomada essa decisão política e que é um pouco sinal dos tempos. Neste momento, temos um sistema misto.
Houve quem pudesse pensar que o SNS não seria necessário, mas esqueçam isso completamente! Por exemplo, na área dos transplantes ou até nos cuidados intensivos, ninguém está na mesma divisão de excelência do SNS. O privado também não tem rede de centros de saúde, os tratamentos para cancros só são disponibilizados para quem possa pagar...Há muita coisa que o serviço público faz e o privado não faz. Mas também há outras que o privado pode fazer, e bem, e que o público não consegue fazer. Tem que existir um trabalho em equipa, complementar.
Precisamos de um Plano Marshall, incluindo recuperação económica e social. Temos de compreender que o inimigo comum é a Covid e que as outras doenças se agravaram nesse contexto. Temos de puxar pelo país e fazer uma ‘geringonça da saúde', mas não só a geringonça política. A geringonça passa por chegarmos a entendimentos, a bases comuns, deixando as diferenças de lado e congregando esforços. Passa também por ter resiliência, aceitar a crítica,
planear, antecipar e ter capacidade de assumir quando se estava errado. Necessitamos mesmo de uma união de esforços. O inimigo comum é a Covid e as suas múltiplas ondas de choque…
São essencialmente necessárias duas coisas fundamentais. Uma, os recursos humanos, porque não podemos continuar a desnatar ainda mais o SNS; temos de tratar bem os profissionais de saúde e pagar-lhes melhor, até porque os ordenados de todos - não apenas médicos e enfermeiros - estão muito longe de ser competitivos.
A outra questão é o necessário investimento em equipamentos. Poderão dizer-me que o que é necessário é boa gestão. Concordo que podemos aproveitar as regras de boa gestão que vêm do setor privado, por exemplo. Mas aproveitar essas boas regras de gestão, também passa muito pelas pessoas, pela sua compensação financeira e até pelo salário emocional. E isto tem faltado muito no SNS. Mas estamos a tempo de melhorar e investir mais nestes dois aspectos: o Humano e a Máquina. Também devem ser vistos como complementares.
Muitos dos nossos aparelhos estão obsoletos. Temos máquinas no SNS com ferrugem, por exemplo, não pode ser! Temos de aliviar a burocracia que emperra algumas aquisições e deixar essa renovação acontecer.
Mas creio que há sinais que apontam que isso irá suceder. Até porque também se fechou um ciclo, em que muitos hospitais foram equipados há 20 ou 30 anos, e essa renovação tem forçosamente de ocorrer.
No fundo, pediria aquilo com que deve ser feito um sistema de saúde. Sobretudo com pessoas. Os profissionais de saúde precisam de ser mais acarinhados, precisam de mais dinheiro e incentivos.
E, no fundo, precisamos de um investimento mais forte no nosso SNS, que é de todos nós. Vínhamos em rampa descendente e precisamos de uns balões de oxigénio.
É preciso compreender que, sem aparelhos e estruturas, dificilmente os profissionais de saúde fazem o seu trabalho em condições, mesmo com muita dedicação e resiliência. A saúde é um bem precioso, mas é um bem que é muito caro. Viver 80 anos traz complexidade, necessidade de investimento. É muito bom juntar gerações, netos, filhos, pais, avós e até bisavós. Mas custa dinheiro.
Creio ainda que é fundamental colocar mais médicos nos centros de decisão. Depois, claro está, a Ministra da Saúde terá também de pedir aos médicos que adquiram mais competências de gestão e as chamadas competências transversais, os denominados “soft skills”.
Nós, médicos, temos de saber de outras competências, de fazer um caminho de aprender coisas novas para acompanhar a sociedade moderna.
Mas, claramente, sublinho que precisamos de ter mais médicos nos centros de decisão. E recordo que os médicos têm uma visão humana e muitas vezes conseguem quase uma antevisão do futuro, fruto da partilha de conhecimentos constante entre a comunidade científica nacional e internacional.
Acho que sai muito reforçado. Um dos factos mais espetaculares foi, num ano, as empresas terem conseguido o desenvolvimento da vacina. É um espetáculo fabuloso terem conseguido uma vacina para uma pandemia num ano! O Mundo estava de joelhos perante um vírus.
Penso que houve vários setores que ganharam mais palco: um deles, os cientistas, outro, os profissionais de saúde. Os políticos sempre estiveram no palco, de forma muito destacada.
Percebemos que os profissionais de saúde e os cientistas eram precisos como pão para a boca para não afundarmos o barco.