Convidada Especial - Tamara Milagre

Tamara Milagre vive de alma e coração o projeto que fez nascer há cerca de 10 anos, quando fundou a Associação Evita, que representa os portadores de mutação genética com alto risco para cancro hereditário.

Foi um episódio ocasional que a acordou para a realidade do cancro hereditário, levando-a a fazer um teste genético onde se desvendou uma mutação no gene BRCA1, que aumenta a predisposição para cancro da mama e ovário.

Nesta entrevista à Roche, Tamara Milagre aborda as falhas na prevenção do cancro em Portugal, mas também projetos que podem ser verdadeiramente relevantes e modificadores da vida das pessoas com cancro hereditário.

Como acontece com a cor dos olhos ou do cabelo, também pode acontecer herdar geneticamente uma predisposição para determinados tipos de cancro. A maioria das vezes, o cancro é um fenómeno que resulta do envelhecimento e da interação entre genoma e ambiente, na sequência de erros limitados a um conjunto de células. Esse tipo de alterações não foram herdadas nem serão transmitidas à descendência.

Mas existem alguns tipos de cancro que surgem no contexto de uma síndrome de predisposição para cancro hereditário. E resultam de mutações em genes chave para o desenvolvimento de tumores.

Não é nada raro! Estaremos a falar de 10% dos cancros mais frequentes em Portugal e na Europa, como a mama, o colorretal ou o cancro da próstata. E também de alguns dos cancros mais letais, como o pâncreas, ovário e estômago.

Os cancros hereditários mais frequentes são os da mama, da próstata, e o colorretal tem igualmente uma percentagem significativa. Também cerca de 10% dos cancros pediátricos são de origem hereditária.

Olhando para o cancro da mama apenas, se de 7.000 casos de cancro por ano em Portugal  cerca de 10% são de origem hereditária, estamos a falar de 700 doentes com cancro da mama que poderiam não ter chegado a ficar doentes. Todos os anos.

Claramente que sim. Mas não estamos a prevenir o cancro com maior potencial de prevenção e deteção precoce, mesmo quando sabemos como se faz.

O que nos dizem vários peritos internacionais é que apenas estão identificados cerca de 20% dos portadores de mutação genética de alto risco para cancro. Significa que temos 80% de potenciais casos de cancro por aí, à solta e com uma espada a pairar por cima da cabeça e que não fazem ideia do risco.

Temos uma total falta de respostas por parte do nosso sistema. Temos de continuar a alertar os decisores na área da saúde para a urgência de aumentar a resposta no cancro hereditário, que tem um potencial de prevenção gigante. Não podemos continuar a ficar um ano à espera do resultado de um teste genético e mais um ou dois anos à espera de uma cirurgia preventiva.

Estamos a falhar redondamente na prevenção destes cancros. E, agora que estamos na Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, a Evita tem várias propostas concretas, com exemplos de boas práticas e de como podemos contrariar esta tendência.

Um dos problemas que temos em Portugal é a ausência de dados nacionais sobre cancro hereditário. E se outros países conseguem, porque é que nós não conseguimos? Há certamente forma de, acautelando a proteção de dados e privacidade, ter dados reais e até integrá-los no Registo Oncológico Nacional.

E perante a falta de dados, nós decidimos que vamos criar esses dados, através de um registo de portadores de mutação genética.

Vamos criar uma plataforma onde qualquer cidadão preocupado com o seu risco de cancro hereditário, por exemplo pela história familiar, poderá inserir os seus dados, através de um questionário inicial. Nesse questionário, vamos avaliar o potencial de haver uma síndrome de cancro hereditário na família. Trata-se de uma plataforma que trabalha com inteligência artificial e vai dando, a cada pessoa, informações personalizadas. As pessoas fornecem as suas próprias informações e são os únicos donos e administradores dos seus dados.

A qualquer momento, cada um pode decidir também retirar-se, bem como aos seus dados, da plataforma.

Sim, cerca de metade das pessoas não tem uma história familiar evidente. Esta plataforma servirá também para ensinar e aprender a gerir o risco.

E podemos passar a mensagem que, dentro do possível, devemos estar atentos à nossa história familiar.

Vamos trazer tudo o que é fundamental para criar um ombro amigo virtual e um assistente pessoal de bolso, que está acessível para cada utilizador em qualquer dispositivo móvel.

Teremos também consultas de psicologia e vamos permitir o contacto de pessoas que estejam a viver situações semelhantes. Uma pessoa que esteja em casa, sabendo da sua mutação e à espera do cancro, gostava certamente de falar com outros em situações idênticas.

A plataforma pode permitir ainda facilitar dados a comunicar ao médico em consultas futuras.  Teremos ‘chats’ de conversação com moderação e também teleconsultas, bem como aconselhamento genético.

Pensamos que a enorme mais-valia desta plataforma é que acaba por aliviar a consulta médica. E vai igualmente possibilitar que disponhamos de dados até agora inexistentes que nos  vão ajudar a aprender mais e a desenvolver novas abordagens terapêuticas ou preventivas no cancro hereditário.

É certamente o que pretendemos. Recordo e saliento que uma das recomendações destacadas no Plano Europeu Contra o Cancro passa por ter um bom e robusto registo de doentes e nós vamos já arrancar com o registo para portadores com mutações genéticas. Temos de fazer este caminho, passar da conversa para a ação.

Estaremos a prestar um serviço público, mas não podemos ficar à espera de apoio público, porque não chegará tão cedo. O nosso plano é reunir um consórcio de apoiantes, incluindo a indústria farmacêutica, reunindo o máximo de entidades que conseguirmos.

Não consigo mesmo explicar. Porque se trata do cancro com maior potencial de prevenção e de deteção precoce e um dos que têm maior impacto socioeconómico.

Temos estudos onde vamos comprovar a carga sócio-económica do cancro da mama e do ovário hereditário. Sai muito mais caro tratar depois estes cancros do que detetar, ainda saudável, uma portadora de uma mutação que, em caso extremo, avança com cirurgias preventivas e fica com o assunto arrumado.

Temos outros problemas que podem ajudar a justificar esta desvalorização do cancro hereditário. Há pessoas preocupadas com a sua história familiar de cancro e que abordam os seus médicos de medicina geral e familiar. Muitos destes clínicos acabam por desvalorizar, porque ainda não há uma formação integrada destes profissionais de saúde para os diferentes contextos. Um cancro da mama e do pâncreas podem estar ligados. Ou um cancro da próstata pode estar ligado a um melanoma.

Naturalmente, não estou a apontar o dedo. O problema não reside nos médicos de família. O que acontece é que não temos uma estrutura criada em Portugal para formar continuamente os profissionais, alertando-os para esta área do cancro hereditário. O grupo de trabalho “Cancro Hereditário”da SPO, o qual integro, já está a trabalhar nisso.

Se sabemos que falhamos cerca de 50% dos portadores de uma mutação por ausência de história familiar evidente, creio que temos a obrigação de trabalhar mais e conhecer melhor a realidade da mutação fundadora portuguesa.

Defendemos que devemos começar por nos centrar na região mais afetada no país por esta mutação e criar uma espécie de projeto piloto de rastreio, fazendo testes genéticos a mulheres a partir dos 25 anos. Podemos começar por um pequeno grupo e ir alargando, de forma a fazer quase um rastreio populacional a uma mutação.

Através deste rastreio e deste estudo, identificaremos os números de portadoras da mutação e conseguiremos ver quantas não têm qualquer referência pela história familiar. Através dessas mulheres, ainda chegamos aos restantes familiares em risco.

Ajudava muito ter um retrato desta mutação, começando numa região piloto e ir alargando ao resto do país. Se sabemos exatamente a localização da agulha no palheiro, porque não vamos lá?

Sobre esta mutação sabemos que há mais de 2.400 anos, o gene BRCA2 sofreu uma mutação em território português, um defeito genético que foi sendo transmitido através de gerações e que foi descoberto há cerca de 15 anos.

Esta pandemia deixa completamente abandonados os portadores de mutação genética, em casa à espera do cancro, sem serem vistos nos seus exames periódicos necessários ou com as suas cirurgias preventivas canceladas e sem remarcação.

Por outro lado, a pandemia sugou todo o apoio financeiro de qualquer outra doença. Porque tudo foi encaminhado para a Covid-19. Percebe-se em certa medida, mas havia uma fatia que devia ter ficado para outras patologias.

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