
Convidada Especial
Maria Eugénia Saraiva, presidente da Liga Portuguesa Contra a Sida
A doença que deixou de ser uma sentença de morte
Muito mudou em 30 anos, desde que em 1990 nasceu a Liga Portuguesa Contra a Sida (LPCS). Com melhores diagnósticos e tratamentos, o VIH passou de uma quase sentença de morte a uma doença crónica. Contudo, a infeção continua a ser preocupante e é preciso insistir na tecla da prevenção. Também o vírus social do estigma se mantém e é necessário combatê-lo.
É nossa Convidada Especial a presidente da Liga Portuguesa Contra a Sida, Maria Eugénia Saraiva. Uma entrevista sobre a evolução da infeção por VIH, que passa também pela literacia e promoção da saúde, sem esquecer a Covid-19 e o paralelismo entre máscaras e preservativos.
A Liga está em plena idade adulta. Que reflexão faz destes 30 anos?
Muita coisa mudou nos últimos 30 anos: a doença democratizou-se e deixou de estar associada apenas a grupos de risco ou populações mais vulneráveis; aumentou muito o número de infetados, com o aumento da esperança media de vid, mas também cresceu a informação disponível, os tratamentos e os apoios aos doentes.
Continua a não existir uma cura, mas viver com o VIH hoje em dia já não é uma sentença de morte. Com tratamento e boa adesão terapeutica e acompanhamento adequado, a qualidade de vida de todos os que vivem com a infeção mudou substancialmente, desde que as pessoas saibam atempadamente o seu estatuto serológico.
Mas nem tudo mudou nestes 30 anos. O que permanece quase como era na década de 1990?
Continua a ser uma infeção que preocupa, continuamos a precisar de insistir na prevenção e no diagnostic precoce e continuamos assistir ao vírus social, ao stigma e à discriminação nos mais variados contextos. Por isso, hoje temos de continuar a passar mensagens de prevenção e inclusão.
Refletimos nestes 30 anos e fizemo-nos uma pergunta: Será que os jovens de hoje conhecem a Liga? Hoje em dia há uma banalização desta infeção, em parte consequência do sucesso em termos da evolução dos tratamentos e formas de prevenção. Mas isso faz com que muitos destes jovens a encarem como uma mera doença crónica, com tratamento e, por isso, a desvalorizem.
Foi a preocupação com os mais jovens que fez a Liga renovar a sua identidade visual aos 30 anos?
Em parte, a nova identidade da LPCS pretende responder a isso, inovar e chegar a estes jovens, sem haver uma rutura com a nossa história e a nossa missão. Esta nova identidade honra os princípios e objetivos da Liga e mantém os elementos da identidade anterior, as cores, a ideia, transmitindo uma mensagem na própria identidade
Ao deixar de se falar de VIH, corre-se o risco de que muitas pessoas, como por exemplo os mais jovens, se esqueçam e por isso a importãncia de colocar o VIH na agenda pública e política, não só no dia 1 de dezembro, mas todos os dias e sempre que existir uma janela de oportunidade. Temos continuamente de falar de prevenção, das formas de transmissão e da importância de um dignóstico precoce.
Passámos de uma infeção muito associada à mortalidade para uma infeção que pode ter uma esperança e qualidade de vida muito semelhante a quem não vive com VIH. Contudo, continua a ser preferível não ter de viver com esta, ou qualquer outra, infecção ou doença.
Os jovens deixaram de se importar com a prevenção?
É necessário insistirmos na mensagem que associa o preservativo a todas as formas de prevenção da infeção. A prevenção continua a ser essencial e o preservativo a melhor vacina, mantendo-se como a melhor forma de prevenir o VIH ou outra infecção sexualmente transmissivel, as hepatites viricas, sifilis, entre outras, nos mais e nos menos jovens. Recebemos vários casos de pessoas acima dos 50 anos, viúvas ou viúvos, separados ou divorciados, pessoas que associam métodos preventivos com contracetivos. É importante continuar a educar para proteger, em qualquer idade, de uma infeção sexualmente transmissível. O preservativo é muito mais do que um método para não engravidar.
A prevenção é uma tónica transversal a quase todas as patologias. Como se pode incorporar esta noção na sociedade?
A verdade é que vivemos cada vez mais numa era de doenças crónicas e temos muitos doentes com várias patologias associadas. É por isso fundamental preocuparmo-nos com a nossa saúde no dia-a-dia. Era positivo termos, nas escolas, uma disciplina sobre Saúde. Para que, desde cedo, pudéssemos passar aos mais novos a mensagem da promoção da saúde e prevenção desta e outras doenças. A mudança começa pelos mais jovens e para que esta exista, a aposta na literacia em saude pode fazer a diferença.
Mas aplicando a áreas terapêuticas específicas?
A prevenção é fundamental e é transversal a várias patologias e áreas terapêuticas. Se pensarmos na promoção para a saúde num sentido lato, temos uma transversalidade naquilo que é a prevenção: saber comer ou fazer exercício físico mantêm-se como mensagens chave para a generalidade das doenças crónicas. Há um ramo comum na prevenção para várias doenças que, depois, pode ser afunilado para patologias ou formas de prevenção mais específicas.
E em que fases da escolaridade se devia abordar este tema?
Não vejo qualquer impedimento de iniciar muito cedo, no pré-escolar, que é onde se começam a introduzir noções básicas de higiene corporal, oral ou até de etiqueta respiratória.
Os nossos jovens, mesmo as crianças mais pequenas, ensinam muitas vezes os mais velhos. Exemplo disso tem sido, o aparecimento e desenvolvimento de boas práticas na área ambiental, com a disseminação das ideias de reciclagem e o reaproveitamento de recursos naturais
Em 2020 é incontornável falarmos da pandemia de Covid-19. A Liga sentiu, nos seus associados, muito impacto com a pandemia?
A Covid-19 teve um impacto em todos nós, doentes, não doentes, no Serviço Nacional de Saúde…E nós também tivemos de nos reajustar e adaptar, a esta nova realidade.
É curioso que o VIH e sida foi igualmente uma pandemia, com muito desconhecimento associado na sua fase inicial e que muitas práticas de resposta à Covid-19 têm semelhanças com as respostas encontradas na área do VIH.
Em relação à atividade da Liga, a nossa primeira atitude foi a de dar mais apoio aos nossos utentes. Começámos por estender a Linha SOS SIDA em termos de horário e tivemos logo centenas de chamadas com dúvidas e receios relacionados com a Covid-19. Também demos todo o apoio na recolha e entrega de medicamentos aos doentes, na entrega de alimentos e bens de primeira necessidade, num aumento de apoios sociais que a pandemia tornou ainda mais necessários.
E também quando falamos de Covid-19 voltamos ao tema da prevenção. O uso das máscaras e o distanciamento físico são cruciais. Também aqui vê paralelismos com o VIH?
Vejo vários paralelismos, sim. Numa fase inicial, no VIH, também era comum pensar-se que esta infecção somente acontecia ‘aos outros’, aos chamados “grupos de risco”. No inicio da Covid-19, também era referido que os mais velhos eram os únicos que corriam risco de vida. Com o tempo, independentemente de sabermos que existe maior vulnerabilidade em algumas populações especificas e algumas faixas etárias, aprendemos qu,e sem os devidos cuidados e precauções, todos podemos estar expostos.
Também na utilização da máscara e do preservativo se podem estabelecer comparações, uma vez que há tendencia para não usar a máscara quando conhecemos bem as pessoas, quando estamos com pessoas próximas…. julgando que sabemos o comportamento dessas pessoas com os outros. O mesmo se passa com o preservativo: desvaloriza-se uma prevenção necessária, confiando na percepção que temos do outro.
Para assinalar o 30º aniversário lançou a campanha “Na Sida Existe Vida”. Porquê este mote?
Ao fim de 30 anos, podemos dizer que existe vida na infeção por VIH e SIDA, por oposição à ideia inicial que associava a SIDA à morte, no inicio desta pandemia. Podemos dizer que apesar dos atamentos para o VIH terem evoluído muito, é necessario passar a mensagem e mostrar que atualmente existem mulheres seropositivas que, devidamente acompanhadas, são mães. Que há homens e mulheres com carreiras profissionais de sucesso, independemtemente de viverem com o VIH. Que, hoje, o tratamento é prevenção e que existem casais serodiscordantes que mantêm relacionamentos seguros. O estigma e a discriminação não podem continuar a ser um obstáculo para quem vive com a infeção e a doença, porque existe vida para além desta infecção e desta doença.
