O sub-financiamento nos cuidados focados na saúde das mulheres está a tornar-se dispendioso

Kate Dion

  • A saúde da mulher continua a ser subfinanciada, sub-investigada e mal compreendida em várias áreas patológicas, incluindo a oncologia, imunologia e neurologia.

  • As mulheres continuam a não receber os cuidados de que necessitam, quando necessitam.

  • Os dados demonstram que um aumento do investimento nos cuidados de saúde da mulher pode gerar retornos económicos substanciais.

Afeta metade da população mundial, pode restringir prematuramente as carreiras das mulheres e está a custar 26,6 mil milhões de dólares à economia dos EUA por ano1, mas é um assunto que quase não é abordado na maioria dos locais de trabalho em todo o mundo. O que é?

A menopausa.

Um estudo recente realizado pela Mayo Clinic demonstrou que a menopausa está a eliminar da economia dos EUA 1,8 mil milhões de dólares em tempo de trabalho perdido todos os anos. Este valor aumenta para 26,6 mil milhões de dólares quando se contabilizam as despesas médicas. E é provável que a conta seja ainda maior quando também se incluem nos cálculos os custos relacionados com horas de trabalho reduzidas, perda de emprego, reforma antecipada ou mudança de emprego.1

As mulheres gastam mais de um terço das suas vidas na peri ou pós-menopausa e 1,2 mil milhões de mulheres em todo o mundo irão atravessar estas fases da vida até 2030, de acordo com a investigação conduzida pela consultora McKinsey.2 Apesar de mais de 1 milhão de mulheres nos EUA passar pela menopausa todos os anos, os efeitos na saúde ainda não são totalmente compreendidos3. Os sintomas incluem afrontamentos, suores noturnos, distúrbios do sono e perturbações cognitivas, mas apenas 25% das mulheres recebem tratamento, segundo apurou a McKinsey.2

Infelizmente, muitos dos problemas que as mulheres sentem à medida que passam pela menopausa refletem-se em todos os aspetos da sua saúde. Neste mês da Saúde da Mulher, estamos a fazer um balanço sobre se está a ser feito o suficiente para resolver as lacunas no financiamento da investigação, bem como os desafios que as mulheres enfrentam quando se trata de receber cuidados de qualidade e de poder aceder aos serviços de saúde.

Há décadas que a investigação sobre a saúde da mulher é subfinanciada e continua a não corresponder ao encargo das doenças que as mulheres enfrentam, segundo revelam os dados.

Tanto as fêmeas de animais como as mulheres têm sido excluídas dos ensaios clínicos. Isto deveu-se, em parte, a preocupações sobre o impacto que os ciclos hormonais das mulheres podem ter nos resultados dos estudos.4 Mas também ao resultado de uma diretriz que a FDA emitiu no final dos anos 1970 a interditar a maioria das mulheres com “potencial para engravidar” de participarem em estudos clínicos depois de se ter descoberto que determinados medicamentos causavam defeitos congénitos graves.2

Desde então, foram realizados esforços para resolver a lacuna na investigação. A diretriz de 1977 foi revertida em 1993 e, em 2014, cerca de 50% de todos os participantes em ensaios clínicos financiados pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA eram mulheres.5

Porém, continua a existir um grande gap entre as proporções de mulheres em ensaios clínicos e a prevalência ou o encargo para a saúde da doença.

Uma análise realizada pelo investigador independente Arthur Mirin, com base em dados dos NIH, e abordada num artigo da Nature5, demonstrou que os distúrbios que afetam desproporcionalmente as mulheres, tais como enxaquecas, dores de cabeça, endometriose e distúrbios de ansiedade, atraem menos financiamento tendo em conta o encargo que exercem sobre a população dos EUA. Isto também se aplica à oncologia, imunologia e neurologia.5

“Infelizmente, [o financiamento para a saúde da mulher] está muito subvalorizado e sub-estudado”, referiu a neurocientista Liisa Galea do Centro de Dependência e Saúde Mental de Toronto, no Canadá, citada no artigo da Nature.5

No que diz respeito à oncologia, uma análise do financiamento com base em dados do Instituto Nacional do Cancro dos EUA de 2007-2017 revelou que os cancros ginecológicos tinham menos apoio financeiro do que outros cancros, considerando a sua taxa de mortalidade, de acordo com o artigo da Nature.5 O cancro do ovário, por exemplo, é o quinto cancro mais mortal, mas o décimo segundo, de uma lista de 19 cancros, em termos de relação financiamento-letalidade. O quadro para o cancro do colo do útero é semelhante e, para muitos cancros ginecológicos, a relação financiamento-mortalidade chegou inclusivamente a cair durante um período de estudo de 11 anos.5

Porém, o aumento do financiamento para a investigação na saúde da mulher poderia captar dividendos. Um investimento estimado de 350 milhões de dólares em investigação centrada nas mulheres poderia proporcionar um retorno económico de 14 mil milhões de dólares e resultar na redução dos custos com cuidados de saúde, numa melhor qualidade de vida e em anos de produtividade adicionais, de acordo com a investigação conduzida pela Women’s Health Access Matters, um grupo de defesa sem fins lucrativos, e pela RAND Corporation, uma organização de investigação e políticas sem fins lucrativos. O estudo incidiu sobre a doença de Alzheimer, a artrite reumatoide e a doença cardiovascular.6

Uma melhor compreensão da biologia do corpo feminino e das condições que afetam especificamente as mulheres, bem como das que afetam tanto homens como mulheres de diferentes formas, desempenhará um papel crucial na prestação de melhores cuidados às mulheres em todas as fases da sua vida.

Um grande conjunto de evidências demonstra que as mulheres têm um risco acrescido de diagnóstico incorreto e/ou tardio e cuidados subótimos em diversas condições devido a importantes lacunas no conhecimento. Por exemplo:

  • É 50% mais provável que as mulheres obtenham o diagnóstico errado após um ataque cardíaco do que os homens, apurou um estudo da Universidade de Leeds.7

  • Um terço das mulheres tem maior probabilidade de ser incorretamente diagnosticada após um AVC.8

  • As mulheres compõem cerca de 80% das pessoas que sofrem de uma doença autoimune, demorando em média cerca de cinco anos a obter um diagnóstico.9,10

  • A probabilidade de as mulheres receberem analgésicos após a cirurgia é 50% menor do que a dos homens,11 ao passo que as mulheres com demência têm menos consultas com um médico de clínica geral, recebem menos monitorização e tomam medicamentos potencialmente mais nocivos, incluindo antipsicóticos ou sedativos, de acordo com a investigação realizada pela University of College London.12

“A disparidade entre as afetações para os cuidados de saúde em geral em comparação com a saúde da mulher, em particular, é ainda mais acentuada, dado que categorias inteiras de condições femininas são omitidas de algumas medições de encargos para a saúde. Por exemplo, a menopausa e sintomas associados não são capturados em bases de dados globais de doenças, que observam amplamente as causas de morte, doenças, lesões e fatores de risco para a saúde”, lê-se na análise de McKinsey.2

As discrepâncias nos cuidados de saúde estão também a originar resultados mais deficitários para mulheres com cancro, tendo a Lancet Commission on Women and Cancer afirmado que um relatório publicado em 2023 “salienta os impactos de grande alcance do género no cancro, enfatiza a necessidade de uma abordagem da investigação e do desenvolvimento de políticas sobre o cancro baseada no género e recomenda mudanças nas políticas para melhorar o acesso aos serviços de cuidados e prevenção para as mulheres”.13

O cancro da mama é o cancro mais frequentemente diagnosticado em todo o mundo e é o tipo de cancro com maior probabilidade de matar mulheres. O cancro do colo do útero é o quarto mais frequentemente diagnosticado. As mulheres com estes tipos de cancro podem obter bons resultados se forem diagnosticadas com antecedência suficiente – o cancro do colo do útero pode ser largamente evitado graças a novas vacinas –, mas as mortes continuam a ocorrer devido à falta de prevenção, deteção precoce e serviços de tratamento, sobretudo em países de baixos e médios rendimentos, onde ocorrem 90% das mortes.13

Isabelle Soerjomataram, co-presidente da Lancet Commission on Women and Cancer, também apelou ao alargamento da discussão sobre cancros ginecológicos, já que as mulheres obtêm frequentemente resultados deficitários quando diagnosticadas com cancros que afetam tanto homens como mulheres, tais como cancros do pulmão e colorretal. Por exemplo, mais mulheres morrem de cancro do pulmão do que de cancro da mama nos EUA, segundo revelam os dados.13

Estas questões podem ser ainda mais agravadas pelo facto de nem sempre conseguirem aceder aos cuidados necessários de forma atempada.

Algumas barreiras ainda impedem as mulheres de procurarem cuidados, incluindo a discriminação de género, a falta de educação e a violência doméstica.

“Como mulher, penso que ainda existe uma noção de que o sofrimento faz parte do que fazemos. As mulheres vêm ter comigo e perguntam: até que ponto a dor é normal? Se algo estiver a impedir a sua capacidade de viver a vida, deverá ter a possibilidade de procurar ajuda e aconselhamento.”

“As mulheres não querem necessariamente ser medicadas e as suas condições nem sempre se encaixam em percursos de cuidados clínicos bem delimitados. Mas todas as mulheres merecem a oportunidade de procurar ajuda, falar, receber conselhos e ser ouvidas”, disse a Philippa Saunders, FMedSci, Secretária da Academia, citada num artigo publicado pela Academia de Ciências Médicas.14

Muitas mulheres não se sentem ouvidas quando falam com os seus prestadores de cuidados de saúde – 84% das mulheres que responderam ao inquérito sobre a Estratégia de saúde da mulher para a Inglaterra disseram que, por vezes, tinham sentido que os médicos não estavam a ouvi-las.15

Muitas vezes, as mulheres referem ser rotuladas como "queixosas crónicas" - seguindo erradamente o estereótipo de género - em que muitas são aconselhadas a consultar um psiquiatra nas fases iniciais de uma doença.8

À medida que os cientistas procuram compreender melhor o corpo feminino, os cálculos dos economistas mostram que a sociedade já não pode dar-se ao luxo de não ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre a sua saúde. Está a tornar-se cada vez mais claro que as mulheres, as sociedades e as economias serão muito melhores assim que começarmos a investir na investigação, nos recursos clínicos e nas mudanças de políticas que as mulheres e a sua saúde merecem.

Referências

  1. Mayo Clinic Proceedings. (2023). Artigo disponível em https://www.mayoclinicproceedings.org/pb-assets/Health%20Advance/journals/jmcp/JMCP4097_proof.pdf [Acedido em maio de 2023]

  2. McKinsey. (2022). Artigo disponível em https://www.mckinsey.com/industries/healthcare/our-insights/unlocking-opportunities-in-womens-healthcare [Acedido em maio de 2023]

  3. National Institute on Aging. (2022). Artigo disponível em https://www.nia.nih.gov/news/research-explores-impact-menopause-womens-health-and-aging [Acedido em maio de 2023]

  4. Weigard et al. (2021). Sci Rep 11, 20925. Artigo disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8536752/ [Acedido em maio de 2023]

  5. Nature. (2023). Artigo disponível em https://www.nature.com/immersive/d41586-023-01475-2/index.html [Acedido em maio de 2023]

  6. The Wham Report. Artigo disponível em https://thewhamreport.org/ [Acedido em maio de 2023]

  7. University of Leeds. (2016). Artigo disponível em https://www.leeds.ac.uk/news/article/3905/heart_attacks_in_women_more_likely_to_be_missed [Acedido em maio de 2023]

  8. Prevention. (2021). Artigo disponível em https://www.prevention.com/health/a26100121/misdiagnosed-women/ [Acedido em maio de 2023]

  9. Autoimmune Association. (2023). Artigo disponível em https://autoimmune.org/resource-center/about-autoimmunity/#1481574903922-68688035-6be6 [Acedido em maio de 2023]

  10. Benaroya Research Institute. (2017). Artigo disponível em https://www.benaroyaresearch.org/blog/post/diagnosing-autoimmune-diseases#:~:text=Being%20diagnosed%20with%20an%20autoimmune,typically%20has%20seen%20four%20doctors [Acedido em maio de 2023]

  11. UK Parliament. (2021). Artigo disponível em https://lordslibrary.parliament.uk/womens-health-outcomes-is-there-a-gender-gap/ [Acedido em maio de 2023]

  12. UCL. (2016). Artigo disponível em https://www.ucl.ac.uk/news/2016/dec/women-dementia-receive-less-medical-attention [Acedido em maio de 2023]

  13. UICC. (2023). Artigo disponível em https://www.uicc.org/news/addressing-gender-barriers-cancer-control [Acedido em maio de 2023]

  14. The Academy of Medical Sciences. (2021) Artigo disponível em https://acmedsci.ac.uk/more/news/a-mans-world-how-healthcare-and-research-is-failing-women [Acedido em maio de 2023]

  15. National Institute for Health and Care Research. (2022). Artigo disponível em https://evidence.nihr.ac.uk/collection/womens-health-why-women-feel-unheard/ [Acedido em maio de 2023]

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