“É crucial derrubar os muros do estigma na esclerose múltipla”

O presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) chama a atenção para a necessidade de derrubar várias das barreiras que se formam em torno destes doentes.

Alexandre Guedes da Silva elege “o muro do estigma” como aquele que “mais sufoca a pessoa com esclerose múltipla” e entende que as associações de doentes devem de ser envolvidas desde o momento do diagnóstico.

O diagnóstico de esclerose múltipla (EM) ergue em torno do doente “uma espécie de labirinto”, que é preciso derrubar, em conjunto e com apoio.

Enquanto associação de doentes, temos de fazer com que as pessoas se sintam parte de uma equipa e que estejam capacitadas ou empoderadas para ultrapassar os obstáculos que viver com EM nos vai colocando no caminho. Uma pessoa sozinha tem muitíssimo mais dificuldade de derrubar estes obstáculos que vão surgindo. As pessoas têm de se sentir parte da solução do problema. Num percurso absolutamente individual é fácil desanimar, porque se enfrentam muitas barreiras.

O papel das associações deve ser o de se constituírem como um espaço de criação da energia necessária para a mudança. Fazer com que todos sejamos capazes de remar para o mesmo lado, com objetivos estratégicos claros, para resolver problemas que nos são comuns.

Aliás, na SPEM estamos a montar um exército de “advogados” do doente como elemento absolutamente imprescindível para colocar a pessoa com doença no centro do sistema nacional de saúde. Estamos a treinar as pessoas com doença nas dimensões política, comunicacional e jurídica. É preciso termos as ferramentas para irmos para o terreno e discutir os problemas com quem toma decisões sobre as nossas vidas.

Há um conjunto muito grande de barreiras, muitas auto impostas, e logo desde que surge o diagnóstico. O diagnóstico ergue uma data de muros à nossa volta, quase como se fosse um labirinto. E alguns desses muros, que são os mais difíceis, são auto impostos.

É preciso derrubar esses muros, sobretudo o muro do estigma, que é o que sufoca mais a pessoa com EM. Dar a volta a isto começa sempre por nós e por uma mudança de atitude em relação à doença.

Muitas vezes, para derrubar muros, o primeiro passo é pedir ajuda. Aconteceu isso comigo, precisamente. Quando recebi o diagnóstico, há cerca de 10 anos, cometi um erro fatal: levantei uma data de muros e auto limitei-me no que fazia. Ao fazer isso, abri espaço para a doença se instalar. Fazia desporto, tinha três empregos ,tinha muita atividade social, liderava associações e organizações. Mas entreguei-me à doença. Até que resolvi ter a humildade de pedir ajuda, mandando abaixo o muro da vergonha.

Mas sem dúvida que a questão do estigma é claramente a batalha que temos de cumprir. Há muito estigma em relação às doenças do cérebro, como a EM.

Defendo que devíamos estar presentes na vida destas pessoas aquando da comunicação do diagnóstico. Temos de estar dentro daquilo que é a prescrição médica. O médico deve indicar ao doente no momento do diagnóstico, e de forma clara, que tem de procurar acompanhamento social na associação X ou Y.

A partir daí, as equipas sócio terapêuticas das associações devem guiar as pessoas em todos os seus passos e necessidades relacionadas com as suas patologias.

Aliás, o impacto do diagnóstico é maior precisamente na estrutura social do doente, na sua vida familiar, no mundo laboral, etc.

A terapêutica pode ser fundamental, mas não pode ser o único parâmetro. A questão social tem de ser abordada, porque não podemos permitir que as pessoas se entreguem totalmente à doença.

É uma realidade que tem vindo a ser cada vez mais evidente. A porta de entrada na associação é o serviço social. São as várias dúvidas que surgem às pessoas que as trazem até nós. E quase nunca são dúvidas médicas ou clínicas, mas antes questões ligadas ao trabalho e direitos laborais, aos apoios a que podem ou não aceder, etc.

É fundamental passar pela ação social, para se perceber em que dimensões uma pessoa necessita de intervenção e ajuda.

Na nossa visão, as pessoas que nos peçam ajuda devem ter duas passagens obrigatórias. Uma delas é no médico de medicina geral e familiar, para observar holistica e globalmente as necessidades das pessoas. Depois, é a assistência social, que olhará para todo o enquadramento social, seja na dimensão do trabalho ou na família.

O relacionamento familiar pós diagnóstico é particularmente grave. Chega a ser o cúmulo do estigma autoimposto: a pessoa sentir-se um estorvo e uma fonte de problemas e sugerir uma separação. Aliás, há uma alta incidência de divórcios pós diagnóstico. Este é um dos maiores desastres da doença, que é as pessoas acabarem sozinhas, muitas das vezes por auto imposição de estigma.

Defendemos um regresso urgente em segurança! Precisamos de regressar muito rapidamente [às unidades de saúde], mas precisamos de o fazer em total segurança e saber claramente o risco a que estamos ou não sujeitos.

São precisas mensagens e respostas claras de quem decide, das tutelas e das autoridades.

O período da Covid-19 foi muito complicado para as associações de doentes. Nós tivemos os funcionários em lay off parcial para ajudar a organização e tivemos alguns dias mais complicados. Mas estamos numa situação estável e temos capacidade de honrar os pagamentos que temos pela frente.

E houve uma grande necessidade de apoio aos nossos associados.

O atual modelo de financiamento parece dificilmente sustentável. Um modelo sustentável deveria passar necessariamente por apoios públicos. Mas diria que quase parece que há o interesse de que os doentes não tenham voz.

EM é uma doença crónica, que é autoimune, inflamatória e degenerativa, que afeta o sistema nervoso central. O mecanismo da doença assenta num erro do sistema imunitário que faz com e a mielina seja considerada um corpo estranho e, por isso, atacada.

A mielina, particularmente afetada na EM, é uma espécie de bainha que rodeia, protege e alimenta as extensões dos neurónios.

Os sintomas da EM são muito variáveis, dependendo das áreas do sistema nervoso central afetadas. Dificilmente haverá duas pessoas com EM que tenham exatamente os mesmo sintomas. Ainda assim, entre os mais comuns estão alterações na marcha, dormência, problemas de visão, tonturas, disfunção sexual ou alterações na fala e deglutição.

Trata-se de uma doença que surge sobretudo entre jovens adultos, sobretudo entre os 20 e os 40 anos. Estima-se que em Portugal haja perto de nove mil pessoas com EM.