“É preciso uma estratégia para a insuficiência cardíaca”

Em Portugal existem cerca de 400 mil pessoas com insuficiência cardíaca, sendo possível que grande parte destas ainda estejam subdiagnosticadas e subtratadas. Estima-se que a sua prevalência possa aumentar entre 50 a 70% até 2030. Atualmente, a insuficiência cardíaca representa ainda a primeira causa de internamento hospitalar após os 65 anos.

Na semana europeia de sensibilização para a insuficiência cardíaca (IC), Luís Filipe Pereira, presidente da AADIC, alerta para a necessidade de adotar uma estratégia nacional e europeia para a IC, que tenha em consideração medidas capazes de “melhorar o conhecimento deste problema de saúde pública, a importância de se aumentar o diagnóstico precoce da IC, o seu tratamento e monitorização, e que permita uma reorganização organizacional dos prestadores de saúde, primários e hospitalares, tendo em vista uma melhor integração e articulação de cuidados a prestar aos doentes”.  

Achei interessante poder participar na ação que esta associação, criada há cerca de cinco anos, tem realizado relativamente a uma doença que, apesar de ser um problema de saúde pública, ainda não é suficientemente conhecida e de conseguir contribuir de forma positiva para as pessoas com IC. Apesar de ter passado por vários setores -- energia, química, segurança social, saúde, banca, seguros -- considero a saúde uma área atrativa, interessante, desafiante e apelativa. 

A IC é um problema de saúde pública com tendência a agravar-se.  Cerca de 80% dos casos de IC afetam pessoas de faixas etárias mais elevadas, a partir dos 65 anos. Tendo em conta a situação demográfica do país estes dados são bastante preocupantes. Somos o quinto país mais envelhecido do mundo, há mais de 20 anos que temos baixas taxas de natalidade, não suficientes para a renovação de gerações e isto significa que vamos ter problemas mais agravados pelo envelhecimento da população.

Os últimos dados disponíveis falam em mais de 400 mil pessoas afetadas pela IC, mas são de um estudo realizado há 10 anos que só agora está a ser atualizado e é um número que peca por defeito. 

Em Portugal, devido ao envelhecimento da população espera-se que o impacto da IC seja cada vez mais problemático. Estima-se que até 2050, um terço da população portuguesa tenha mais de 65 anos em Portugal, o que significa que as doenças crónicas vão ter um papel ainda mais pesado no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no orçamento para a Saúde. Já hoje, aliás, Portugal é o terceiro país na Europa em que as pessoas com mais de 65 anos têm mais de duas patologias. O que significa um peso da doença bastante elevado. 

No que respeita à IC, dado que o envelhecimento da população vai agravar-se, a doença vai tornar-se uma das principais patologias crónicas, senão a principal. A IC é ainda mal compreendida pela população, tardiamente diagnosticada, causa de hospitalizações frequentes e a mais comum de internamento acima dos 65 anos, com uma mortalidade elevada, muitas vezes superior à dos cancros mais comuns. É urgente que se priorize a IC e que se entenda a necessidade do desenvolvimento de uma estratégia específica, fundamental para a saúde pública portuguesa. 

Neste campo, a AADIC tem desempenhado um papel importantíssimo. Apesar de recente, a associação tem a vontade de contribuir para a definição de uma estratégia para a IC que permita ter um impacto importante no que respeita à informação sobre a doença, ao papel do diagnóstico precoce, ao seu tratamento e monitorização colocando o doente no centro do sistema.

A literacia em saúde é extremamente importante. Se tivéssemos uma atuação mais alargada, mais sistemática, capaz de esclarecer a população sobre os riscos que correm ao adotarem determinados comportamentos, podíamos aliviar bastante os problemas do SNS. É a dicotomia clássica entre a medicina preventiva e a medicina curativa. A diferença é que quando se atua na medicina curativa os resultados são visíveis, na maior parte das vezes, há um resultado, salvam-se vidas. Porém, no caso da medicina preventiva há apenas um conhecimento intelectual e no limite podemos saber que houve uma redução da taxa de incidência de determinadas patologias, algo que é gratificante, mas que não tem a visibilidade ou o mesmo que o lado curativo. 

Na base da questão da prevenção está o conhecimento. Defendo que nas escolas deveria haver uma formação das crianças quanto à questão da literacia e assim, desde muito cedo, passar a mensagem de que somos os gestores da nossa própria saúde. A forma como conduzimos a nossa vida do ponto de vista de saúde, como controlamos o nosso estilo de vida -- alimentação, hábitos tabágicos, consumo de álcool, obesidade -- faz parte da literacia. 

Além disso, há um sinal de alerta a ter em consideração. Apesar da IC estar bastante concentrada a partir dos 65 anos, têm surgido casos de pessoas mais jovens. Por vezes associado a patologias específicas, de que são exemplo problemas cardíacos congénitos, mas algumas adquiridas por comportamentos de risco. E aí, mais uma vez, a importância da prevenção, da literacia e a necessidade de divulgar junto do público que temos de cuidar da nossa saúde.

A primeira barreira é o desconhecimento. Os primeiros sintomas da IC também não ajudam: cansaço, inchaço nas pernas, edemas, falta de ar… Aspetos específicos que muitas vezes as pessoas associam ao aumento da idade e que por falta de conhecimento as pessoas acabam por desvalorizar.

O subdiagnóstico é uma barreira porque as pessoas, muitas vezes, só em episódios de urgência é que têm acesso ao diagnóstico. Isto levanta uma questão mais lata: a forma como está organizado o SNS. Temos um SNS curativo, mais do que preventivo. E aqui assume particular importância o papel dos cuidados de saúde primários na prevenção das doenças: é decisivo. É necessária a criação de soluções integradas para evitar que as situações de IC que hoje em dia são essencialmente diagnosticadas em episódios de urgência passem também a ser detetadas pelos especialistas em Medicina Geral e Familiar, por profissionais devidamente capacitados e com acesso às ferramentas de diagnóstico necessárias. Assim será possível identificar de forma precoce as pessoas com IC, em estádios iniciais, para que depois haja uma interligação com os cuidados hospitalares de forma a prestar a melhor assistência possível à pessoa com IC. E esta é uma área que ainda tem de ser aprofundada, melhorada, não só em Portugal, como também na Europa.

A aprovação de medicamentos específicos para a IC também tem sido uma barreira dado que a resposta nem sempre tem sido tão rápida como seria desejável.

Se detetada a tempo, as pessoas podem viver com IC de forma controlada e com qualidade de vida. Daí a importância do diagnóstico precoce:  quanto mais cedo for diagnosticada, maior será o impacto positivo na pessoa, na sua família e no próprio Serviço Nacional de Saúde ao permitir uma redução dos episódios de internamento e da mortalidade que lhe está associada. Se pensarmos que a IC é uma doença crónica e que os maiores custos para o SNS, entre 60 a 70%, se devem a doenças crónicas, é de esperar que haja um impacto positivo nesta despesa quando se associa a prevenção e a maior capacidade de diagnóstico precoce.

No ponto de vista do doente é necessário um maior conhecimento da doença. Do ponto de vista clínico e organizacional é preciso uma maior integração e articulação entre os cuidados de saúde primários e hospitalares. São caminhos que podem contribuir para que a pessoa com IC consiga ter uma maior qualidade de vida, com a doença controlada. 

O papel da AADIC neste período pandémico tem sido o de alertar, informar, acentuar aqueles que são os comportamentos de defesa face a este vírus junto dos seus associados. Infelizmente tudo leva a crer que a COVID-19 teve impacto, quer no diagnóstico, quer no tratamento, quer na monitorização das pessoas com IC, e é uma situação que acreditamos que vai agravar o curso da doença nos próximos anos. O número de pessoas com mais de 65 anos vai aumentar e como esta doença tem uma grande prevalência em pessoas nesta faixa etária o problema tenderá a agravar-se. Hoje há dúvidas de que tenhamos apenas 400.000 mil pessoas com IC dado que são números referentes há 10 anos. Ou seja, a IC não afetará hoje em dia apenas 4%, mas sim 5 ou 6%. A IC necessita de uma atenção específica, de uma estratégia concreta, porque pode-se tratar do principal problema de saúde pública dos tempos que aí vêm. Há especialistas que têm alertado mesmo para que a IC possa vir a ser a nova epidemia dado que todos os ingredientes estão presentes. 

Num call for action europeia que será em breve entregue à Comissão Europeia, ao Parlamento Europeu, ao Conselho da Europa, é solicitada uma estratégia para a IC, fazendo-se um apelo para que os estados-membro também desenvolvam medidas.

Sei que a IC não é a única patologia com grande prevalência, mas estamos a falar de dados objetivos. Os números que se prefiguram é de que a prevalência possa aumentar de entre 50 a 70% até 2030, num período de apenas nove anos. Se pensarmos que hoje em dia teremos entre 500 a 600 mil pessoas com IC, os números da prevalência em 2030 são na ordem das 800 mil a 1 milhão de pessoas. É um número muito significativo. 

A mensagem é clara. A IC vai ter um papel cada vez mais expressivo na sociedade portuguesa. É importante termos uma estratégia de prevenção e de combate à IC que tenha em consideração os pontos que foram referidos -- desde o conhecimento da doença e aumento da literacia, passando pela necessidade de diagnóstico precoce, acesso aos meios, exames e tratamentos necessários, bem como a capacidade de integração de cuidados para uma melhor gestão da pessoa com IC --, bem como uma atenção dirigida a uma patologia que se vai tornar muito mais frequente, com uma mortalidade que se hoje em dia já é superior a muitos dos cancros mais prevalentes, colocando no terreno uma estratégia que marque pela positiva um conjunto de ações a desenvolver para preservar o mais possível a população deste risco  de saúde pública.

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