
A década do cérebro e das neurociências que caminha para uma revolução
Jorge Caria - Medical Affairs Lead
“Esta será sem dúvida a década das neurociências. Vamos finalmente mudar a história natural de um conjunto de doenças que na década passada nem sonhávamos que íamos conseguir mudar”.
O cérebro sempre foi a área de paixão de Jorge Caria, médico e Medical Affairs Lead na Roche e um dos mentores do Building Tomorrow Together, um programa de inovação da Roche em Portugal destinado a apoiar investigação científica no âmbito das neurociências.
“A noção de quem nós somos, enquanto pessoas, está no cérebro. Uma doença do cérebro pode efetivamente destruir aquilo que faz um indivíduo ser quem é”, diz Jorge Caria, quase como justificação para a sua paixão e para a sua ligação profissional permanente à área das neurociências.
Nenhum outro órgão do corpo humano foi tão estudado como o cérebro nas últimas décadas. Nem sempre informação é sinónimo de conhecimento, mas Jorge Caria acredita que sabemos já muito sobre o cérebro, até porque temos a capacidade de “espreitar” para dentro dele.
“Esta década vai ser absolutamente radical em termos de evolução da neurociência. Tanto na revolução farmacológica (novos alvos terapêuticos identificados por modelos de Inteligência Artificial), como nos meios de diagnóstico (diagnóstico molecular e imagiologia avançada) e também ao nível da aplicação terapêutica da ciber e nanotecnologia”, sublinha.
Ainda na área da tecnologia, e falando de Saúde Digital, em breve começaremos a ver um uso crescente de aplicações aprovadas como dispositivos médicos, que medem de forma contínua um conjunto de biomarcadores digitais, como a actividade física global, a qualidade da marcha, a destreza manual ou a cognição, entre outros. Dados que irão permitir a médicos e a doentes uma melhor compreensão da evolução de doenças crónicas entre as consultas médicas. Esta informação contínua e individualizada é um passo importante para ficarmos mais próximos da chamada medicina de precisão, em que a abordagem terapêutica é direcionada às características de cada indivíduo, melhorando os resultados de saúde.
Jorge Caria salienta que grande parte da dificuldade em estudar o cérebro humano se deve à impossibilidade de os modelos animais o replicarem com precisão e das óbvias limitações éticas aos estudos em seres humanos.
Ainda longe de uma medicina regenerativa, a neurociência hoje centra-se sobretudo em entender melhor os processos de neurodegeneração. Há também muitas doenças neurológicas que são genéticas e, aí, entra a terapia génica, com potencial curativo.
“Vamos finalmente mudar a história natural de um conjunto de doenças que ainda há bem pouco tempo nem sonhávamos que íamos conseguir mudar, quer na área das doenças genéticas como nas neurodegenerativas”.
O caso da atrofia muscular espinhal pode ser apontado como paradigmático. Doença rara e grave de origem genética, carateriza-se, na sua forma mais grave, por uma perda progressiva de força muscular que faz com que os bebés nunca cheguem a conseguir sequer levantar a cabeça. A maioria destes bebés não chega sequer a completar os dois anos de vida.
“A ciência já está a transformar completamente a história natural dos bebés que nascem com esta doença. Primeiro, fazendo o diagnóstico nos primeiros dias de vida, ainda antes de surgirem os primeiros sintomas, através de um teste genético. Depois, com novos medicamentos já disponíveis e com outros ainda em investigação, podemos repor a síntese da proteína em falta, aparentemente parar a lesão dos neurónios, e permitir que estas crianças tenham uma vida mais próxima do normal. Isto é absolutamente fascinante”.
O benefício de o diagnóstico ter de ser feito ainda antes de a doença manifestar os primeiros sintomas, quando o número de neurónios lesados ainda é baixo, é fundamental nas doenças neurológicas, porque os neurónios não têm capacidade de regeneração: uma vez mortos não são substituídos por outros neurónios, estão perdidos para sempre. Um dia talvez cheguemos lá, mas essa será uma revolução para outra década!
Também na área neurodegenerativa se perspectivam mudanças significativas na próxima década, como nas doenças de Parkinson, Alzheimer ou de Huntington, em que a razão da neurodegeneração é a acumulação de uma proteína anómala que leva à morte dos neurónios.
“A dúvida não é se vamos lá chegar, a dúvida é quando lá chegaremos. Mas vamos lá chegar. Nestas doenças, é necessário alterar os processos que levam à acumulação da tal proteína anómala, para que esta não se forme ou para que se arranje maneira de a remover. Isto, sempre acompanhado de diagnóstico cada vez mais precoce”.
Jorge Caria antevê que nos próximos anos seremos capazes de “melhorias significativas em termos de diagnóstico”, antecipando-nos ao momento em que começam a surgir sintomas.
A expetativa é a de que venha a ser possível diagnosticar Alzheimer em pessoas quem ainda não têm demência ou Parkinson em quem ainda não se manifestaram alterações de movimento, conseguindo, com uma intervenção precoce, parar a progressão da doença e não deixar que atinja a fase sintomática.
“Temos hoje tecnologias que não tínhamos há uma década. Tenho a certeza que caminhamos, em termos de diagnóstico precoce de demência e de novas opções terapêuticas, para soluções que vão parar, ou pelo menos lentificar a progressão destas doenças”.
Com o objetivo de trilhar caminho na inovação nas neurociências, a Roche Portugal lançou no ano passado o “Building Tomorrow Together” (BTT), cujo bootcamp arrancou em abril.
O objetivo principal desta iniciativa da Roche, que conta com o apoio institucional da embaixada Suíça, é abrir portas a jovens investigadores e a startups portuguesas que tenham projetos inovadores na área das neurociências.
Enquanto mentor de um dos dez projetos finalistas, Jorge Caria elogia sobretudo a “coragem e, até, uma certa humildade” das equipas de investigadores e académicos que se predispuseram a aprender mais sobre o processo que permite transformar uma ideia num produto com potencial para ser usado em seres humanos, para fins terapêuticos ou de diagnóstico, a uma escala global.
“Encaro o BTT como uma experiência para conseguirmos montar uma plataforma de criação de valor para investigadores portugueses”, afirma, destacando que uma das enormes mais-valias do projeto é o acesso das equipas de investigadores a mentoria com peritos mundiais no desenvolvimento de inovação terapêutica e respectivo processo de aprovação pelas autoridades reguladoras.
Trata-se também de uma junção de sinergias entre a academia, as instituições de investigação e a indústria farmacêutica, que pode contribuir também para “aumentar a literacia dos próprios grupos de investigação em Portugal” sobre o que é a investigação pré-clínica e quais os passos a seguir na fase clínica e na perspectiva posterior de colocação de um produto no mercado, que possa ser acedido pelos doentes que dele precisam.
“Seria muito interessante fazermos o BTT evoluir para que esta cadeia de criação de valor fosse uma constante. Ajudar os investigadores portugueses a irem além de um ‘paper’ numa revista científica, transformando ideias em soluções terapêuticas reais”.
Portugal tem condições e profissionais altamente capacitados para ter centros de investigação de excelência, com uma relação qualidade-custo competitiva. O BTT assume-se, assim, como um projeto em que a Roche pretende servir de catalisador para grupos de investigação.
Estão a concurso no BTT dez projetos finalistas, que foram seleccionados por um júri de peritos de entre largas dezenas de candidaturas, por serem os que mostraram mais impacto e potencial.
Adaptando-nos aos novos tempos que vivemos, as cinco semanas de bootcamp estão a ser realizadas através de meios digitais e virtuais, cumprindo as regras de distanciamento físico, mas mantendo o espírito delineado no programa “Building Tomorrow Together”.
Todos os finalistas estão a receber apoio e mentoria para desenvolver as suas ideias e contam com formação personalizada que os ajudará a apresentar o seu pitch ao painel de jurados, que selecionará três projetos finais.
As ideias que conquistarem o Top 3 serão premiadas: 20.000 euros para o primeiro classificado, 12.500 euros para o segundo e 10.000 para o terceiro. O projeto vencedor poderá vir a desenvolver um piloto com a Roche Partnering Internacional.